Por Carolina Cunha
Na foto, Neil Gaiman
Poderia ser um mago de chapéu pontudo. Mas foi um sujeito chamado Morpheus, protagonista da série Sandman, quem colocou o nome do escritor britânico Neil Gaiman no mapa dos quadrinhos. O eterno Morpheus, o Senhor dos Sonhos, tecelão das histórias de todos os seres capazes de sonhar, ainda é o seu personagem mais conhecido no Brasil.
Desde que alcançou a fama com a série de quadrinhos, considerada uma das mais influentes do nosso tempo, pouca coisa mudou. O autor de 51 anos continua a se vestir de preto, seu cabelo ainda se parece com o de Morpheus, ele continua colecionando livros (sua biblioteca tem mais de cinco mil volumes) e, o mais importante, escreve sem parar.
E foi essa necessidade quase compulsiva de escrever que o transformou num verdadeiro contador de histórias, que saíram dos quadrinhos para ganhar páginas em romances, contos, livros infantis, séries para TV, roteiros para cinema, poemas e até letras de música.
Agora, é ele quem vira personagem no livro Príncipe de Histórias – Os Vários Mundos de Neil Gaiman. Nesse lançamento da Geração Editorial, o escritor recebe um tratamento de “super star”.
Com prefácio de Terry Pratchett, o livro dos autores Hang Wagner, Christopher Golden e Stephen R. Bissette funciona como um guia detalhado da trajetória do escritor e de seu complexo universo criativo.
Obra por obra, de 1988 a 2008, tudo o que um fã de carteirinha procura está lá: resumos de todas as histórias (dos quadrinhos aos romances), curiosidades, descrição e origem de personagens, entrevistas exclusivas com o escritor, artigos, além de conversas com pessoas que já colaboraram com ele, como os ilustradores Dave McKean e Philip Craig Russell.
A paixão do escritor inglês por literatura fantástica vem desde cedo. Na infância nos anos 60, Neil Gaiman devorava livros de fantasia e quadrinhos de super heróis, como Thor e Batman. Mas foi a leitura de C.S Lewis (Crônicas de Nárnia), Michael Moorcock e J.R.R.Tolkien, que despertou sua paixão por histórias. Tanto que ao contrário de muitos garotos, não queria virar astronauta. Queria ser a pessoa que tinha escrito o livro O Senhor dos Anéis.
O legado de Sandman
Neil Gaiman faz parte de uma geração de escritores ingleses que invadiu a indústria de quadrinhos americana na década de 1980. Um dos primeiros foi Alan Moore, criador das HQs Monstro do Pântano (1983) e V de Vingança (1981).
Naquele momento, o mercado estava adotando o formato graphic novel, que apresenta roteiros bem elaborados e mais densidade psicológica. E foi com Sandman que o selo Vertigo, da DC Comics, consolidou o gênero e o levou a outros patamares.
“Gaiman desenvolveu um estilo de escrita que dialoga com diferentes referências da literatura e da cultura pop. Isso atribuiu à sua produção – e a ele, por extensão – um ar mais maduro, lido pela crítica e pelo público como um novo modo de narrar quadrinhos”, analisa Paulo Ramos, especialista em quadrinhos e professor do Departamento de Letras da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Gaiman faz narrativas sombrias e mágicas, povoadas por seres mitológicos, criaturas e personagens densos. “Gaiman cria mundos ricos e detalhados. Ele está sempre muito bem embasado e vai fundo num universo, resgatando histórias, deuses esquecidos e rituais. Pesquisa muito e sabe usar essas ideias a favor do seu próprio trabalho”, diz Érico Borgo, editor do site Omelete.

O personagem Sandman
Para criar o reino dos sonhos, Gaiman bebeu da fonte de mitos bíblicos, nórdicos, lendas europeias, árabes e africanas, criando assim uma nova mitologia. Tudo isso sem esquecer as referências da cultura pop como mutantes, jovens góticos e ícones do rock (Lúcifer foi inspirado em David Bowie e as letras de Tori Amos aparecem em algumas de suas histórias).
“Ele foi um dos inauguradores de um gênero de fantasia e de ficção. A linha Vertigo é fruto total do trabalho que o Gaiman fez, e ele ajudou a definir outra maneira de escrever quadrinhos”, diz o jornalista Heitor Pitombo, autor de Entes Perpétuos – O Universo Onírico de Neil Gaiman, livro que avalia a carreira do escritor.
Outro feito de Gaiman foi alcançar um público até então pouco representado nos quadrinhos – as mulheres. Uma brincadeira comum nos anos 90 é que, para introduzir a namorada no universo dos HQs, bastava presenteá-la com um exemplar de Sandman. “A década de 90 tem a ascensão da estética das super gostosas e dos machões musculosos. De repente, aparece o Gaiman escrevendo sobre mulheres de verdade. Ele sempre fez personagens femininos marcantes”, lembra Borgo.
O voo para a literatura
Tem gente que envelhece sem conseguir sonhar. Não é caso de Gaiman. Em 1991, foi o primeiro roteirista de quadrinhos a ganhar um prêmio literário, o World Fantasy Award, por melhor conto – ele havia recontado o clássico Sonho De Uma Noite De Verão, de Shakespeare. Depois, fez obras como Stardust (um conto de fadas adulto), Anansi Boys e Neverwhere. Todas refletindo uma certa “identidade”, encontrada nos quadrinhos.
“Depois de Sandman, ele manteve o mesmo estilo de escrever. O que mudou foi que ele não se contentava em escrever para um formato só. Ele definiu seu estilo na época do Sandman, com uma abordagem onírica, de sonho e fantasia”, diz Heitor Pitombo.
Gaiman alcançou o respeito da crítica americana com o livro Deuses Americanos (2001), considerado o seu grande romance. Uma espécie de “roadmovie nos livros”, a história conta a vida de imigrantes nos Estados Unidos que trouxeram seus deuses com eles e, seduzidos pela vida moderna, começam a abandoná-los aos poucos.Em 2012, o livro deve virar um seriado da HBO.
Sua primeira obra infantil foi O Dia em que Troquei meu Pai por Dois Peixinhos Vermelhos (1997), depois veio Coraline (2002) e Os Lobos Dentro das Paredes (2003).

Coraline é o que mais se destaca entre esses. É um conto de fadas sombrio, que foi rejeitado pela primeira editora, temendo que fosse assustar as crianças. Gaiman foi bater em outra porta. Publicado, o livro virou Best-seller nos EUA, com direito a adaptação para os cinemas.
“A última grande obra de Gaiman foi a Coraline. Mas ele ainda pode surpreender e fazer algo de mais impacto”, diz Borgo.
“A última grande obra de Gaiman foi a Coraline. Mas ele ainda pode surpreender e fazer algo de mais impacto”, diz Borgo.